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20 julho 2015

A cheia de 1975 e “Tapacurá estourou”

No último dia 17 de julho de 2015 fez 40 anos da grande cheia de 1975.
Eu já tinha passado por cheias em 1966 e em 1970, quando morávamos na Vila dos Comerciários, em Casa Amarela.
Na primeira, eu era muito criança, tinha apenas 7 anos de idade e lembro que os adultos ficavam enfiando gravetos na areia, esperando a água ir subindo. Essa enchente do Capibaribe chegou na nossa porta. Mas não chegou a entrar na casa.
Na segunda, eu tinha 11 anos e havia ido para a escola (estudava no Grupo Escolar Dom Vital), onde fazia a 5ª série primária, que era um preparatório para o Exame de Admissão ao Ginásio. Depois do recreio, a professora, Dona Lúcia, chegou na sala para dispensar todos, pois havia previsão de cheia. Quando desci do ônibus, já atravessei a Estrada do Arraial com água na altura da barriga.
Em 1975, eu já tinha 16 anos e morávamos em Olinda. Vimos as imagens da cheia pela televisão. Uma tia minha, Gisela, morava na Vila com o marido, Orígenes, e seus três filhos: Luís Roberto, Carlos Alberto e Gisela Maria. Mas, no dia 16 de julho, mamãe foi com minha irmã, Kathleen, à Vila e findou deixando minha irmã (que na época tinha 13 anos) na casa de tia Gisela, pois era mês de férias escolares.
Só sei é que lá na Vila deu água bastante e casas onde jamais havia entrado água, a mesma subiu mais de um metro e meus tios perderam tudo. E, no desespero de tio Orígenes, ele teria mexido seu uísque, durante a madrugada, com uma cobra de duas cabeças que ia passando na água.
As águas começaram a baixar no sábado, dia 18 de julho e no domingo eu e mamãe saímos de Olinda e fomos à casa de vovó Maria, mãe de mamãe, que morava na Rua J. A. da Silveira, na Madalena, com meu tio Mílton, tia Glaura e tia Flávia, com as duas filhas, Carol e Michele, que tinham 4 e 2 anos, respectivamente.
O que vimos no Recife era só desolação. Além da lama no meio da canela, víamos móveis, utensílios de cozinha, corpos de animais…
Ao chegarmos na casa de vovó, tia Glaura disse que tinha ido à procissão de Nossa Senhora do Carmo, na quinta-feira, 16 e que uma senhora que estava também na procissão, disse que faltava a coroa de Nossa Senhora e que isso não era um bom presságio. Chamamos o pessoal pra vir pra Olinda, pois aqui não dava cheia. Vovó não quis vir. De lá, fomos à casa de tia Gisela, que estava trabalhando na limpeza da casa e fomos ajudar. Voltamos pra Olinda só com Kathleen. Nesse mesmo domingo, o governo federal anunciou a liberação do FGTS de quem morava no Recife, pois as pessoas perderam tudo o que tinham.
Na segunda-feira, dia 20 de julho, a cidade estava apinhada de gente, pois sacariam o FGTS e usariam esse dinheiro para comprar o que perderam.
Pela manhã, também fui pro Recife, mas para comprar os passes estudantis meus e dos meus irmãos, no DETERPE (Departamento de Terminais Rodoviários de Pernambuco). É que não havia ainda EMTU, nem Consórcio Grande Recife e quem administrava os ônibus intermunicipais era o DETERPE.
Fui pro Recife tranquilo, o terminal dos ônibus de Olinda era na Rua da Saudade e a imobiliária (Coimbral) onde papai trabalhava era na mesma rua. Passei no escritório de papai, peguei o dinheiro das passagens e segui pro Cais de Santa Rita, onde era o DETERPE (que funcionava na antiga Rodoviária do Recife). Segui meu caminho pelas ruas do Recife, que estava aparentemente calmo, apesar de ter muita gente na rua. Rua da Saudade, Conde da Boa Vista, Ponte Duarte Coelho, Avenida Guararapes, Pracinha, Larga do Rosário, Estreita do Rosário. Na esquina da Estreita do Rosário com a Praça 17, havia uma farmácia, a Drogaluz, que tinha uma balança. Eu era bem magro, mas gostava de me pesar. Entrei na farmácia e flagro uma conversa da balconista da farmácia com uma cidadã: “Fulana, eu vou embora porque ligaram pra repartição dizendo que 'Tapacurá estourou'”, disse a cidadã à balconista. Achei estranho, mas segui meu caminho. A cidade ainda estava bastante calma. Praça 17, rua do Imperador, rua da Praia, Martins de Barros, Cais de Santa Rita. Comprei os passes estudantis e voltei pelo mesmo caminho que fui.
Ao chegar na Avenida Guararapes, deparo-me com muita gente correndo a esmo. Parei um senhor e perguntei o que estava acontecendo: “Meu filho, corra, que Tapacurá estourou”, disse-me ele.
Aí, eu comecei a correr em direção à Coimbral. A minha ideia era pegar um carro lá pra ir à Madalena e à Vila dos Comerciários, pra ir buscar vovó, o tio, as tias e as primas e pegar também tia Gisela, marido e filhos e trazê-los para Olinda, pois “se desse cheia aqui em Olinda, o Recife já teria morrido afogado”, era o comentário muito escutado na época.
Só que meu pânico me traiu. Ao chegar na cabeceira da ponte Duarte Coelho, eu perdi a força nas minhas pernas e me arrastei, pela balaustrada da ponte, até a rua da Aurora e me sentei no quem-me-quer à margem do Capibaribe, em frente ao cinema São Luiz. Não conseguia mais andar, sequer correr. Como eu era muito religioso, católico fervoroso, fiquei rezando, esperando a hora da água subir e me levar. O pior é que no meu terror, eu “via” o rio subir, cheio de baronesas.
Pela minha frente passavam senhoras finas, com dinheiro, oferecendo aos taxistas, que recusavam qualquer viagem. Teve uma mulher grávida que desmaiou na minha frente. Naquela época, os carros não podiam seguir pela rua da Aurora pra Olinda. Quem vinha do Cais José Mariano era obrigado a entrar à direita na ponte Duarte Coelho. Os motoristas começaram a bater com os carros nos gelos baianos que fechavam a rua da Aurora, a fim de soltá-los e seguirem pra Olinda.
Ônibus paravam na Conde da Boa Vista, antes mesmo da ponte e desciam motorista e cobrador, abandonando os passageiros à própria sorte. Todo mundo correndo a esmo, sem norte, sem destino, pra todo lado, como se ninguém soubesse mais pra onde seguir. E eu rezando, pedindo a deus que protegesse a minha família, porque eu já estava fadado a ser levado pelas águas do Capibaribe.
De repente, minhas pernas começam a dar sinal de vida novamente e eu corri em direção à Coimbral. A essa altura do campeonato, a Conde da Boa Vista estava travada. Ônibus e automóveis abandonados e as pessoas correndo.
Ao chegar na frente da Coimbral, avisto papai, cujo carro estava estacionado na frente da imobiliária, com o rádio ligado nas alturas, pois as rádios já estavam desmentindo a notícia catastrófica. Eu estava histérico: “papai, papai, vamos salvar vovó e tia Gisela”, gritava eu. Papai, sem conseguir me acalmar, me pega pelos ombros e me balança fortemente pra eu voltar ao normal e me explica que foi um boato e que estava tudo bem. Depois de beber água na Coimbral, voltei pra casa.
Ao descer na parada de ônibus de perto de casa (ainda é a mesma!), encontro mamãe, descalça. Ela havia perdido as sandálias na correria no centro da Cidade.
Quando cheguei em casa, peguei uma ficha de aula e registrei o acontecido.
Isso aconteceu há exatos 40 anos.